Comentamos o discurso do senhor E. Muller diante do túmulo de Kardec. Ocasião em que descreve a personalidade de Kardec, atendendo ao pedido de Amélie Gabrielle Boudet, esposa de Allan Kardec. É uma homenagem tocante.
Hoje que lembramos o desencarne deste grande espírito. É muito importante que possamos aprender a sentir qual o verdadeiro sentido da vinda de Allan Kardec ao mundo.
Ninguém, meus filhos, ninguém poderia compreender com tanta profundidade as leis de Deus como compreendeu Allan Kardec, se não tem um coração repleto de amor, de paz, de piedade verdadeira. Não é possível penetrar os mistérios profundos do Pai sem um coração puro, sem uma alma iluminada. Esse espírito reduziu-se a um mero intelectual humano por ter profunda piedade por todos nós da Terra. Esse espírito apequenou-se sendo um mero professor da Terra, aos vossos olhos, porque sentia como vossas dores são frutos de um pensamento limitador.
Filhos, apenas os séculos futuros vos permitirão entender quem de fato é Allan Kardec, espírito poderoso que se fez insignificante no mundo para que conseguisse explicar de forma tão clara, para inteligências tão limitadas com as vossas, o início, o básico da lei do Pai.
É um espírito que foi capaz, verdadeiramente, de tornar-se pequeno para que vocês começassem a entender a revelação divina. Sem ele, vossa confusão seria extrema e nunca conseguiríeis sair das vossas fantasias tolas, fantasias limitadoras. Ele é a luz que rasga – em meio ao vosso caótico pensamento – e consegue apontar um caminho da verdade. Ele é o exemplo sublime que deveis seguir, quando se trata de saber o que é o exemplo no mundo de alguém verdadeiramente elevado, porque em muitos aspectos da vida, não tendes ainda acesso ao Cristo. Ele é a ponte que vos liga ao coração do Mestre e um espírito como esse não poderia jamais ser um frio e tolo intelectual cheio de orgulho, como muitas vezes, corações infantis chegam a insinuar no próprio seio do movimento criado por esse espírito magnânimo.
Não pensem, portanto, que o Espiritismo compreendido leva a uma visão fria e sectária. É tão difícil para vocês entenderem a grandeza desse espírito que vocês, sem se darem conta, destroem a obra que ele deixa para vocês. Alguns dizem “espiritismo científico”, outros dizem “caridade”, outros dizem “filosófico” e não entendem o que esse espírito veio ensinar: a verdadeira ciência, o sentimento puro, a reflexão elevada e o beijar os aflitos tudo é a mesma coisa! Como é difícil para vocês entenderem isso. É a mesma coisa! Quando beijais um enfermo estás vivendo também uma experiência de vida. Da mesma forma que o santo que está em êxtase sente Deus, da mesma forma que o grande cientista que se aproxima das verdades do universo. Por que vocês separam tanto e, assim, não compreendem a grandeza desse espírito?
Para ele, filho, importava servir, não interessava como. Segurando crianças com seu magnetismo poderoso como ele fez, ou escrevendo, mesmo fatigado, palavras que muitos de vocês ignoram, mas que estão nos registros da Revista Espírita. Sabeis, filhos, cada linha da Revista Espírita foi escrita com o sacrifício que vocês não podem nunca imaginar. O sacrifício de uma luz poderosa, que se contorcia em si para se fazer pequena, mas clara. Para não queimar os vossos olhos tão tolos e tão infantis, espiritualmente falando. Mas não fez isso por arrogância, ninguém poderia fazer isso por arrogância. O Mestre de Lyon fez isso por amor, um amor profundo, silencioso e ativo, que produziu uma obra que vocês ainda não conhecem.
Apenas quem estudar, com um coração puro, poderá descobrir os tesouros que Kardec deixou registrado nas páginas da Revista Espírita. Jovens filhos, aprendam abrir esta revista com muito vagar, mas sabendo que encontrareis revelações assombrosas e sereis felizes se conseguis compreendê-las com mais profundidade. Essa é minha mensagem para a juventude espírita no dia de hoje.
Fiquem todos em paz, envoltos nesse instante pela energia do Mestre de Lyon, Allan Kardec, que ama a todos nós, a mim e a vocês.
Falo por último junto a esta fossa aberta, que contém os despojos mortais daquele que entre nós se chamava Allan Kardec.
Falo em nome de sua viúva, daquela que foi sua companheira fiel e feliz durante trinta e sete anos de uma felicidade sem nuvens nem mescla, daquela que compartilhou de suas crenças e de seus trabalhos, como de suas vicissitudes e suas alegrias; que, hoje só, se orgulha da pureza dos costumes, da honestidade absoluta e do desinteresse sublime de seu esposo. Ele é quem nos dá a todos o exemplo de coragem, de tolerância, de perdão das injúrias e do dever cumprido escrupulosamente.
Falo também em nome de todos os amigos, presentes ou ausentes, que seguiram passo a passo a carreira laboriosa que Allan Kardec sempre percorreu honradamente; daqueles que querem honrar sua memória, lembrando algum traço de seu caráter.
E, para começar, quero dizer-vos por que seu envoltório mortal foi para aqui conduzido diretamente, sem pompas e sem outras preces senão as vossas! Haveria necessidade de preces por aquele cuja vida toda não foi senão um longo ato de piedade, de amor a Deus e à Humanidade? Não bastaria que todos pudessem unir-se a nós nesta ação comum, que afirma a nossa estima e a nossa afeição?
A tolerância absoluta era a regra de Allan Kardec. Seus amigos, seus discípulos pertencem a todas as religiões: israelitas, maometanos, católicos e protestantes de todas as seitas; pertenciam a todas as classes: ricos, pobres, cientistas, livres-pensadores, artistas e operários, etc. Todos puderam vir aqui, graças a esta medida que não compromete nenhuma consciência e constituirá um bom exemplo.
Mas ao lado desta tolerância que nos reúne, é preciso citar uma intolerância que eu admiro? Fá-lo-ei porque, aos olhos de todos, ela deve legitimar esse título de mestre que muitos dentre nós atribuímos ao nosso amigo. Essa intolerância é um dos caracteres mais marcantes de sua nobre existência. Ele tinha horror à preguiça e à ociosidade; e este grande trabalhador morreu de pé, após um labor imenso que acabou ultrapassando as forças de seus órgãos, mas não as do seu espírito e do seu coração.
Educado na Suíça, naquela escola patriótica em que se respira um ar livre e vivificante, ele ocupava seus lazeres, desde a idade de quatorze anos, a dar cursos aos seus camaradas que sabiam menos que ele.
Vindo para Paris, e sabendo falar e escrever alemão tão bem quanto o francês, traduziu para a Alemanha os livros da França que mais lhe tocavam o coração. Escolheu Fénelon para torná-lo conhecido, e essa escolha denota a natureza benévola e elevada do tradutor. Depois, entregou-se à educação. Sua vocação era instruir. Seus sucessos foram grandes e as obras que publicou, de gramática, de aritmética e outras, tornaram popular o seu verdadeiro nome, o de Rivail.
Não satisfeito em utilizar suas faculdades notáveis numa profissão que lhe assegurava um tranquilo bem-estar, quis que aproveitassem os seus conhecimentos aqueles que não podiam pagar-lhe, e foi um dos primeiros a organizar, nessa fase de sua vida, cursos gratuitos mantidos na Rua de Sèvres, 35, nos quais ensinava Química, Física, Anatomia Comparada, Astronomia, etc…
É que ele havia feito contacto com todas as ciências e, tendo-as bem aprofundado, sabia transmitir aos outros o que ele próprio conhecia, com talento raro e sempre apreciado.
Para este sábio devotado, o trabalho parecia o próprio elemento da vida. Assim, mais do que ninguém, não podia suportar a ideia da morte como a apresentavam então, tendo por fim um eterno sofrimento ou uma felicidade egoísta e eterna, mas sem utilidade, nem para os outros nem para si mesmo.
Ele era como que predestinado, bem o vedes, a espalhar e vulgarizar esta admirável Filosofia que nos faz esperar o trabalho no além-túmulo e o progresso indefinido de nossa individualidade, que se conserva melhorando-se.
Ele soube tirar dos fatos considerados como ridículos e vulgares, admiráveis consequências filosóficas e toda uma doutrina de esperança, de trabalho e de solidariedade, parecendo assim, em paralelo ao verso de um poeta que ele amava:
Transformar o vil chumbo em ouro puro.
Sob o esforço de seu pensamento, tudo se transformava e engrandecia aos raios de seu coração ardente. Sob sua pena, tudo se precisava e se cristalizava, por assim dizer, em frases de deslumbrante clareza.
Ele tomava para seus livros esta admirável epígrafe: Fora da caridade não há salvação, de cuja aparente intolerância ressalta a tolerância absoluta.
Ele transforma as velhas fórmulas, e sem negar a feliz influência da fé, da esperança e da caridade, arvorava uma nova bandeira ante a qual todos os pensadores podem e devem inclinar-se, porque esse estandarte do futuro leva escritas estas três palavras:
Razão, Trabalho e Solidariedade.
É em nome dessa razão que ele colocou tão alto; é em nome de sua viúva; em nome de seus amigos que eu vos digo a todos que não mais olheis para esta fossa aberta. É para mais alto que devemos erguer os olhos para encontrar aquele que acaba de nos deixar! Para conter esse coração tão dedicado e tão bom, essa inteligência de escol, esse espírito tão fecundo, essa individualidade tão poderosa, vós mesmos bem o vedes, medindo-a com os olhos, esta fossa seria muito pequena, e nenhuma poderia ser bastante grande.
Coragem, pois, e saibamos honrar o filósofo e o amigo praticando suas máximas e trabalhando, cada um na medida de suas forças, para propagar aquelas que nos encantaram e convenceram.